quinta-feira, 8 de novembro de 2007

AIDS, homens que fazem sexo


AIDS, homens que fazem sexo
com homens e sexo oral

Nas últimas duas décadas, a AIDS tem sido o
problema relativo à saúde mais importante para
o universo dos homens que fazem sexo com
homens, e mesmo que tenha prontamente respondendo
aos desafios colocados por essa epidemia,
essa população ainda permanece vulnerável
ao contágio pelo Vírus da Imunodeficiência
Humana (HIV).
No Brasil a transmissão sexual do HIV responde
por grande parte dos casos de AIDS. Segundo
o banco de dados do Ministério da Saúde
(http://www.aids.gov.br), entre 1990 e 1999,
a via sexual esteve relacionada a contatos entre
homens que fazem sexo com homens em 48%
dos casos. Entre estes, 63,5% deles declararamse
contaminados por exclusivo contato sexual
entre homens. Entretanto, mesmo que a relevância
da via sexual na transmissão do HIV seja
indiscutivelmente reconhecida, o sexo oral
nem sempre é percebido como prática sexual
propriamente dita, ainda que em muitas comunidades
represente uma das primeiras experiências
sexuais entre jovens (Donovan & Ross,
2000).
Atualmente existem evidências científicas
suficientes para se concluir que o sexo oral pode
ser uma via de transmissão para o HIV. Entretanto,
os estudos conduzidos até a data presente
ainda não dispõem de respostas precisas
com respeito à quantificação e qualificação desse
risco. Segundo uma revisão do Grupo Consultivo
de Especialistas da Inglaterra, “a relativa
escassez de casos de infecção pelo HIV atribuídos
ao sexo oral é provavelmente influenciado
pela escassez com que a exposição tenha
ocorrido isoladamente, associada à tendência
de se atribuir a transmissão do HIV a qualquer
outra exposição de alto risco que possa ser identificada”
(Hawkins et al., 2000).
Essas evidências são primariamente baseadas
em relatos de casos clínicos, mas algumas
também em estudos epidemiológicos. Entre
eles, há que se remarcar o The Options Project
(CDC, 1999), assim como o de Rothemberg et
al. (1998), por apontar a importância do reconhecimento
desse risco, ao identificá-lo, e assim
identificar a importância de seu potencial
de contribuição no volume global da transmissão
do HIV.
Os relatos de casos de transmissão oral não
especificam exatamente qual foi o tipo de contato.
As evidências sugerem que existe um significativo
risco de soroconversão associado ao
sexo oral receptivo (contato da cavidade bucal
do sujeito em questão com o genital do parceiro).
É razoável supor que o sexo oral receptivo
com ejaculação na boca, oriunda de um parceiro
infectado pelo HIV, envolveria exposição
a uma grande quantidade de vírus. Ao lado dos
diversos relatos da transmissão do HIV associada
a sexo oral receptivo, existem também relatos
via sexo oral insertivo, assim como associados
a cunnilingus.
As evidências sugerem que o sexo oral parece
ser a forma menos arriscada para a transmissão
do HIV. Entretanto, parcerias homossexuais
e heterossexuais normalmente realizam
sexo oral conjuntamente com sexo genital e, assim,
não é possível comparar-se os riscos desses
dois tipos de atividade sexual. Isoladamente,
o risco da transmissão pelo sexo oral pode
ser aumentado na vigência de inflamação ou
ulceração na boca, na vagina ou no ânus (Rothemberg
et al., 1998).
O conjunto dessas evidências e os atuais conhecimentos
do HIV e da cavidade bucal indicam
que a transmissão do HIV via sexo oral é
biologicamente plausível, e sustentam a conclusão
epidemiológica que esse comportamento
de risco é real, porém menor por essa forma
de exposição do que pelas outras vias de sexo
desprotegido (Hawkins et al., 2000). No entanto,
ainda que muitos estudos tenham dimensionado
essa prática de risco, a maneira como
ele vem sendo percebido pela população e como
vem sendo tratado pelas comunidades clínico-
científicas reflete uma não assimilação do
conhecimento disponível, revelando significativa
carência de acuidade na percepção dessa
via de transmissão.

O risco – o que é e como é percebido

O porquê das pessoas colocarem-se em risco,
motivando-se ao sexo desprotegido, é uma
questão complexa. Este procedimento é usualmente
observado como um comportamento
“patológico”, inalcançável pela educação. Entretanto,
nesse contexto, “patológico” baseia-se
na epistemologia médica, que por vezes exclui
motivações éticas individuais. Ao considerar a
sobrevivência biológica como o principal objetivo
da vida humana, essa epistemologia entende
sexo desprotegido num mundo com
AIDS como “patológico”. Entretanto, se outros
valores éticos são aceitos, valores que não a
longevidade, mas aqueles relacionados com o
conteúdo ou a qualidade de vida, então sexo
desprotegido talvez não deva necessariamente
ser considerado patológico (Odets, 1995).
Como descrito por Parker & Terto (1998:119),
“desde 1989, a pesquisa sociocomportamental
Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(6):1841-1844, nov-dez, 2003
realizada entre homens que fazem sexo com
homens no Brasil vem registrando níveis relativamente
altos de conhecimento e informações
sobre o HIV e a AIDS”. No entanto, esses níveis
relativamente altos de conhecimento, paradoxalmente,
relacionam-se a “...baixas taxas de
mudança de comportamento” (Parker & Terto,
1998:119).
A construção de modelos teóricos para a
compreensão do crescimento da AIDS é de importância
estrutural nesse contexto, pois não
deixa de ser verdadeiro e atual o fato de que,
mesmo com relativo alto nível de conhecimento
e informação, indivíduos – em menor ou
maior número – continuam a realizar práticas
sexuais genitais e orais sem uso de barreiras
protetoras contra o HIV (Souza et al., 1999).
Mais e mais, a questão da prevenção ultrapassa
os limites da epidemiologia, inserindo-se
em contexto ético: se aos indivíduos é dado conhecer
um determinado risco, se a elucidação
a respeito desse risco é disponível, assim como
as formas de se evitá-lo, e se esse risco pode representar
a perda da vida individual e de outros,
expor-se a ele ou fazer que outros se exponham
representa um paradoxo para educadores,
clínicos e cientistas.
No entanto, se ao lado desse aparente paradoxo,
pudermos pensar que a percepção de risco
pode estar estreitamente relacionada a formas
de proteção contra um determinado mal,
e que essas formas de proteção são muitas vezes
reinterpretadas e readaptadas pelo sujeito,
na subjetividade da sua compreensão, então um
novo campo de reflexão pode ser estabelecido.
As ciências sociais vêm apontando a complexidade
dos fatores ligados à administração
dos riscos ligados à transmissão do HIV. Sob
essa ótica, esses trabalhos observam como diferentes
contextos e diversas interações sociais
e individuais podem influenciar os comportamentos
e as práticas sexuais. O que pode ser
decisivo nesse contexto é o fato desses trabalhos
não apontarem necessariamente para um
comportamento irracional mas, antes disso,
para uma outra forma de racionalidade (Davies
et al., 1993).
A respeito dessa questão, o trabalho realizado
por Mendès-Leite (1995), é particularmente
esclarecedor, ao descrever o fenômeno
que ele chamou de proteções imaginárias.
Esse fenômeno mostra que a maioria dos
indivíduos conhece a necessidade da administração
dos riscos, está convencida da sua importância
e realiza práticas preventivas determinadas.
No entanto, muitas vezes esses indivíduos
procedem a uma reapropriação das normas
de prevenção, deslocando seu sentido para
SEXO ORAL E HIV ENTRE HOMENS QUE FAZEM SEXO COM HOMENS 1843
outra perspectiva, ainda que, sob a ótica deles,
o objetivo preventivo permaneça o mesmo.
O ator social recorre a uma manipulação
simbólica das práticas preventivas, ao tornálas
mais próximas de seu quadro cognitivo, o
que lhe permite readaptá-las, guardando a impressão
de não se colocar sob risco. É o caso do
indivíduo que, no lugar de utilizar sistematicamente
o preservativo em encontros aonde haja
penetração, usa-o segundo a aparência ou o
estilo de vida de seus parceiros sexuais. Se, para
a epidemiologia, tal tática pode parecer irracional
pela sua ineficácia, ela é totalmente lógica
para o indivíduo. Na realidade, na sua própria
maneira, o que o indivíduo faz aqui é utilizar
um dos principais mandamentos preventivos:
evitar contatos desprotegidos com uma
pessoa contaminada (Mendès-Leite, 1995).
Sendo uma construção cultural, a prevenção
(e os comportamentos que ela implica)
não pode ser estudada senão sob a visão do
conjunto das representações da doença, do corpo,
da infelicidade e do mundo ao qual os indivíduos
estão inseridos. Em se tratando da transmissão
de uma doença pela via sexual, as representações
do imaginário social sobre a sexualidade
(sexo, gênero, categorias e orientações
sexuais, estilo de vida e de sexualidade,
etc.) são também de grande importância (Mendès-
Leite, 1995).
É por isso que os indivíduos vão interpretar
os preceitos preventivos segundo o seu quadro
cognitivo sócio-cultural, dando-lhes um sentido
que tornará possível colocá-los em prática.
É um mecanismo perfeitamente racional, que
não nega a importância das atitudes prospectivas
para se prevenir contra a doença. Muito pelo
contrário, é exatamente por conhecê-los e
por dar crédito a esses preceitos que os indivíduos
irão deles se apropriar e lhes dar sentido
próprio, mesmo se aos olhos dos outros o conteúdo
“racional” possa parecer, no mínimo, paradoxal
(Mendès-Leite, 1995).
Os atores sociais também tentam fazer prevalecer
suas preferências e práticas sexuais com
uma lógica preventiva, mas, segundo o mesmo
raciocínio, readaptam essa lógica de acordo
com seus gostos e inclinações. Eles se “aproveitam”,
por exemplo, do fato de que o discurso
sobre a importância do preservativo na felação
seja muito ambíguo, para escolher exatamente
a favor daquilo que eles preferem. Essa credulidade
é semelhante àquela de pessoas que, por
diminuírem o número de seus amantes, presumem
poder negligenciar a utilização sistemática
dos preservativos (Mendès-Leite, 1995).
E é por isso que esses paradoxos, desde
sempre inseridos no contexto epidemiológico,
1844 FUNARI, S. L.
Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(6):1841-1844, nov-dez, 2003
devem também ser compreendidos por outras
áreas de conhecimento, como a antropologia,
a psicologia e a sociologia, na medida em que
requerem reflexão ética aprofundada a respeito
do significado da liberdade individual nas
sociedades humanas.
Se essa liberdade é ilustrada nesses paradoxos,
são corretos os argumentos de Wolfe (2001:
213), ao afirmar que “sem total liberdade moral,
todas as outras formas de liberdade são ilusórias.
Despojados dos aspectos eróticos de nossa
natureza, nós não podemos ser livres, não
importa o quanto acreditamos ser, em nosso trabalho,
nossas políticas – ou mesmo, estranhamente
– nas nossas vidas sexuais”.

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